Jean Marcos Bonatto


TRAUMA E TESTEMUNHO: CAMINHOS TEÓRICOS PARA ENSINO DAS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA


 A memória, seja ela individual ou um conjunto do coletivo, pela perspectiva da reconstituição histórica, ocupa um papel fundamental e pode ser analisada tanto como fonte principal quanto como uma ferramenta para compreender o contexto do acontecimento, porém, analisada como um fenômeno ela pode suscitar inúmeras controvérsias. Nesse texto serão brevemente elencadas algumas das perspectivas, e alguns caminhos teóricos para o ensino das relações entre história e memória. Foram selecionados alguns autores que julgo essenciais para a compreensão dessas relações, bem como para compreender suas interlocuções, nesse conjunto se encontram Tzvetan Todorov, Beatriz Sarlo, Giorgio Agambem, Paul Ricoeur e Michael Pollak.

Sem entrar no âmbito de uma análise etimológica profunda do que vem a ser a memória, ela se caracteriza na maioria das vezes pela reconstituição de um acontecimento, ora traumático, através dos testemunhos dos indivíduos envolvidos, que podem ser eles as vítimas, os próprios malfeitores, ou outras testemunhas indiretas. A problemática se dá então, a partir do momento em que nos propomos a analisar as representações e os paradoxos entre esses testemunhos, e levar esses elementos para a sala de aula.

Se para Certeau existem dois tipos de história: “Um primeiro tipo de história se interroga sobre o que é pensável e sobre as condições de compreensão; a outra pretende encontrar o vivido, exumado graças a um conhecimento do passado” (CERTEAU, 1982, p. 29), para o docente essa distinção em sala de aula pode ser um problema difícil de ser vencido, e todavia, o papel do professor se torna mais delicado quando ele se propõe a explicar esses paradigmas aos alunos.

Costumeiramente, quando proponho ensinar sobre os traumas, e para mostrar aos alunos a importância da memória e do testemunho em um fato histórico, me amparo em dois conjuntos teóricos principais: A respeito da violência, dos meios que se manifestam, dos motivos pelos quais se manifestam e ainda da análise dos meios e dos fins da violência sob a esfera do direito; e de outro lado, através relação entre história e memória, onde se faz importante também compreender às diferentes formas de reconstituição da memória.

Nessa perspectiva, Pollak (1992) analisa o problema da ligação entre memória e identidade social, Pollak classifica em dois tipos de elementos constitutivos da memória, o primeiro segundo ele, são os acontecimentos vividos pessoalmente, ou seja, aquele que o narrador presenciou “ao vivo”, e, o segundo, são os acontecimentos “vividos por tabela”, que são aqueles que abrangem a noção de pertencimento, explica Pollak, que nas memórias “por tabela” o narrador nem sempre participou diretamente, mas compartilha o mesmo sentimento das pessoas ou do grupo que se sente pertencido, nas suas próprias palavras:

“A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória. Isso é verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. Todos sabem que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político.” (POLLAK, 1992, p. 204)

Diante disso, Pollak (1992), classifica esses fenômenos de memórias coletivas como projeções ou transferências, que comumente ocorrem de uma geração para outra. Além dos acontecimentos, Pollak caracteriza também os personagens e os lugares da memória. De acordo com ele, os personagens, assim como os acontecimentos são caracterizados pela sua relação com o fato, dessa forma, podem ser personagens diretos ou personagens “por tabela”. Os lugares de memória na analogia de Pollak, podem ser de lembraças pessoais, como um lugar de férias na infância, ou um lugar comum ao coletivo e a uma determinada geração como os monumentos aos mortos, que é o exemplo dado pelo autor.

Todo trauma, analisado historicamente, pode trazer consigo também uma possibilidade de reparação, essa reparação vem de encontro com a forma com que se predispõem os fatos, é nesse aspecto que entramos na análise da violência sob a égide do Direito. Esses aspectos são de grande importância para a compreensão de um determinado fato histórico, um autor importante para se pensar os testemunhos da violência e quais os sentidos que são dados para o julgamento dos atos violentos é Giorgio Agambem (2008), em O que resta de Auschwitz, Agambem nos mostra como surgem equívocos na compreensão do testemunho e que tipos de juízos deles se fazem, e ainda, como boa parte disso acaba se tornando politicamente tendencioso, essas relações entre justiça, direto natural e reparação são debatidas por Agambem com base em testemunhos como o de Primo Levi. Essas reflexões cabem num contexto de análise geral em relação aos traumas históricos, pois suscitam formas de contextualizar os testemunhos com outros objetos de pesquisa.

Para Tzvetan Todorov (2000), lidamos frequentemente com a carga emocional deixada pelos traumas do século passado, principalmente os genocídios em massa, e também com a exigência constante de recuperar e recordar o passado. Dessa forma, Todorov escreve seu texto no sentido de suscitar uma análise dos “usos da memória” – ou, em alguns casos os abusos. Ele trata também sobre o elogio incondicional a memória e a condenação do esquecimento, e nos mostra como isso foi marcante principalmente no estudo dos regimes totalitários do século passado, segundo o autor, devemos antes de tudo considerar que “la memoria no se opone en absoluto al olvido” (TODOROV, 2000, p. 15) e que é muito importante reiterar a interação entre o esquecimento (olvido) e a conservação da memória. Todavia, Todorov alerta para a recuperação do passado através da memória e sua utilização subsequente, pois de toda forma, e mesmo involuntariamente, podemos cometer alguns abusos quando utilizamos a memória como objeto de estudo.

O autor analisa também como a memória se encontra ameaçada, para Todorov um dos principais motivos disto são os encaminhamentos político-ideológicos que suprimem o resgate da memória, o exemplo sintetizado pelo autor é a maneira como os chamados “Estados democráticos” se apropriaram daquilo que o autor chama de “seleção” da memória, ou seja, os rasgos ou as partes que na memória seriam conservados e os que seriam marginalizados e logo esquecidos, dessa forma, a reflexão de Todorov pode auxiliar vislumbrar nas fontes de pesquisa histórica como a memória e o testemunho podem ser manipulados tanto pela própria justiça quanto pelas instituições de poder. Muitas vezes, explica o autor, o direito de testemunhar se torna uma obrigação, devido ao fato de que o acontecimento vivido pelas vitimas terem sido de natureza excepcionalmente trágica. Todorov é essencial para estabelecer parâmetros de comparação entre as diferentes formas como recuperamos o passado e como transformamos isso em aprendizagem histórica.

Nesse sentido, outro teórico importante que também pode ser essencial para se pensar os usos e abusos da memória é Paul Ricoeur (2007), Ricoeur analisa as questões dos abusos da memoria no plano patológico-terapêutico, ou seja, a memória que advém de um trauma e que busca uma reparação; no plano pratico; e no plano ético-político, na concepção do autor “o exercício da memória é o seu uso, ora, o uso comporta a possibilidade de abuso” (RICOEUR, 2007, p. 72). Quando nos propomos a colocar em prática o uso da memória, esta é determinada geralmente pela aporia do uso e abuso, para Ricoeur a isso recair sempre sobre duas perguntas principais: O que está sendo lembrado? E, de quem é a memória?

Uma importante reflexão proposta por Ricoeur que se relaciona ao objeto dessa pesquisa, diz respeito ao conceito proposto por ele de “memória ferida”, ou seja, a rememoração de um fato traumático, para isso Ricoeur se apoia na psicanálise de Freud para apontar as transições e as interlocuções que a memória tendo em conta o acontecimento traumático pelo qual passou o narrador.

Beatriz Sarlo (2007) retrata a memória das vitimas das ditaduras na América Latina, em especial na Argentina, para discorrer sobre a crítica ao testemunho, sobre o conceito de pós-memoria e sobre as reconstituições da memória, para verificar como os sujeitos se apropriam de discursos alheios para “lembrar o não vivido”, de acordo com Sarlo isso é verificado no caso do Holocausto quando, por exemplo, os filhos reconstituíam a experiência dos pais através da memória deles, para Sarlo:

“O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a historia consegue acreditar na memória, e a memoria desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade)” (SARLO, 2007, p. 9)

Sarlo também é essencial para compreender como os meios midiáticos interferem na recuperação da memória, de acordo com Sarlo: “quanto maior peso dos meios de comunicação na construção do público, maior a influência que terão sobre essas construções do passado”. (SARLO, 2007, p.92)

Diante dessas colocações, vale ressaltar que esse pequeno texto e as considerações que nele se encontram é parte de uma grande gama de estudos que tem como foco os distanciamentos e aproximações da história e da memória, bem como das análises que já aprofundaram as discussões sobre a violência e o trauma, contudo, ainda resta ao professor de história a tarefa de compreendê-los e de repensar os currículos e a prática de forma que isso seja mais debatido com os alunos, pois, por mais incômodas que sejam, essas questões são de grande importância para compreensão dos diversos cenários históricos do conturbado século XX.

Referências
Jean Marcos Bonatto é graduado em História pela Universidade Estadual do Paraná.

AGAMBEM, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III); tradução Selvino J. Assmann. – São Paulo: Boitempo, 2008.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História; tradução de Maria de Lourder Menezes; - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alan François [et. al.]  - Campinas, São Paulo: Editora Unicamp, 2007.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva; tradução Rosa Freire d’Aguiar. – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria; traducción Miguel Salazar – Barcelona, Ediciones Paidós Ibérica, 2000.




10 comentários:

  1. Olá Jean. Em primeiro lugar parabéns pelo ótimo texto. Hoje mesmo estava discutindo em um grupo de estudos na UFSC o texto do Freud, "Recordar, repetir e elaborar" e isso auxiliou muito na compreensão sobre os dois lados da memória das quais fala o Ricoeur, a memória que repete e a memória que recorda. Essa distinção entre uma memória que é repetida quase como uma compulsão, criando resistência e silenciamentos a outras reminiscências e a memória que é recordada, que é buscada, fruto de um "trabalho de memória", nos leva diretamente para o assunto do "dever de memória". Gostaria de saber uma opinião sua, se possível, a respeito das leis memoriais, o que você pensa sobre políticas de Estado que usam algum acontecimento traumático como argumento para se criarem leis de preservação/promoção da memória. Acredito que essa questão seja algo importante para ser pensada e levada para a escola, você concorda? Afinal de contas, as pessoas devem ser obrigadas a rememorar algo, ou isso precisa vir de uma demanda da própria população/grupos/indivíduos? E você já teve alguma experiência enquanto professor discutindo o tema "memória" e "trauma" em sala de aula?
    Atenciosamente,

    Diogo Matheus De Souza.

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    1. Olá Diogo, ótimas questões e obrigado pela indicação!
      Então, trabalho especificamente com as questões dos crimes contra os judeus na II GM, durante minhas pesquisas me deparei com alguns autores que fazem críticas as influências do Estado sobre as memórias individuais e coletivas, um deles que vale citar - apesar de também merecer devida crítica - é Norman Finkelstein com "A indústria do Holocausto", nele Finkelstein acusa Israel de usar a imagem do Holocausto e principalmente as memórias para "sanar demandas políticas" tornando assim, o Holocausto uma "marca comercial". Essas são questões que põe um grande peso sobre nosso ofício, situar o “lugar” da memória em consonância com as reivindicações identitárias é bem complexo, principalmente, porque nesses casos o historiador é encurralado num certo dever de opinar, tal como você fez comigo (risos), e em alguns casos suas opiniões são levadas ao pé da letra, como aconteceu com nosso exemplo Finkelstein, que sofreu acusações de traição, antissemitismo, antissionismo, foi impedido de entrar em Israel e chegou até perder um emprego de professor .
      Quanto à questão dessas perspectivas no Ensino, sinto que é muito importante tratar disso em sala, eu mesmo já tratei dessas questões em vários momentos, principalmente quando ensinei sobre o Holocausto, o material é vasto, basta ter a paciência de selecionar, interpretar e adequar à metodologia.
      Att, Jean M. Bonatto

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  2. Olá! Parabéns pelo texto!
    Eu trabalho com o conceito de memória nos meus trabalhos, principalmente na perspectiva de Michael Pollak. Minha pergunta é como você trabalharia com os conceitos de memória e esquecimento em sala de aula?

    Att,
    Amanda Assis de Oliveira

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    1. Olá Amanda, obrigado! O interessante é trazer os testemunhos como base para promover debates e confronta-los a fim de potencializar o processo de ensino e aprendizagem sobre o tema. Já fiz isso com trechos dos livros de Primo Levi "É isso um Homem?" e de Carlos Liscano "El furgón de los locos", o resultado foi bacana. Também trabalhei com trechos de testemunhos das vítimas do Holocausto no Tribunal de Nuremberg (disponíveis no acervo Avalon da Yale University). O importante é lembrar que o estudante é o protagonista de sua própria aprendizagem, você como docente tem como função provocar isso nele.

      Att, Jean M. Bonatto

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  3. Maria Fernanda Magalhães Scelza11 de abril de 2018 às 16:42

    Olá, Jean.

    Gosto muito de trabalhar a temática da memória com meus alunos e alunas, principalmente de Ensino Médio. Nas aulas sobre o Cangaço, por exemplo, sempre abordo a disputa pela memória no sertão, onde temos os cangaceiros como "justiceiros" e "mercenários". Os resultados das discussões costumam ser interessantes.

    No entanto, tenho uma enorme curiosidade em trabalhar a construção da memória sobre a ditadura civil-militar de 1964, sobretudo relacionada a sua denominação: golpe X revolução.

    De que maneira poderia proceder?

    Atenciosamente,
    Maria Fernanda Magalhães Scelza

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    1. Olá Maria Fernanda, muito bacana sua proposta! Confesso que também compartilho de sua curiosidade. Trabalho com memória e política no Holocausto, geralmente privilegio o estudo das próprias fontes, como os testemunhos ou do cinema e dos sistemas de representação acerca do assunto. Seria o caso de buscar nos acervos públicos, ou em obras de testemunhas como exemplifiquei para Amanda há pouco.Nesse sentido, julgo que o interessante seria explorar justamente essa dicotomia que você aponta, no sentido de suscitar conclusões por parte dos próprios alunos.

      Att, Jean M. Bonatto

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  4. Bom dia Jean. Texto muito legal. Acho que você oferece de forma bem densa um suporte teórico significativo pra pensar a articulação entre memória e historia. No entanto, metodologicamente, como trabalhar essas questões em sala?

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    1. Bom dia Wemerson, agradeço sua pergunta! Delimitando a temática e o material acerca do assunto é que podemos vislumbrar a melhor forma de se trabalhar, como tratei com outros participantes há pouco, explorar as fontes testemunhais é sempre uma boa opção, dessa forma colocamos o estudante mais próximo das representações do acontecimento, diferente de se estudar interpretações e reproduções de terceiros, como ocorre em uma aula de história tradicional.

      Att, Jean M. Bonatto

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    2. Excelente trabalho.
      Considerando Sarlo e a questão da reconstrução da memória através dos meios midiacos, como você lida com alunos que se apropriam dos discursos alheios para “lembrar o não vivido” ? A exemplo a questão das ditaduras militares vividas na América.


      Caroline dos Santos Andrade

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  5. Prezado Jean, Parabéns pelo texto!
    Eu trabalho com memória e ressentimentos. Gostaria de saber como podemos trabalhar a ideia de ressentimentos por meio da oralidade?
    Atenciosamente,
    Rivaldo Amador de Sousa

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