Lívia Caroline Santos Alves


REFLETINDO SOBRE CURRÍCULO E FORMAÇÃO: AS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS E O SURGIMENTO DOS NOVOS ATORES CURRICULARES


As teorias pós-críticas sobre o currículo chegam ao Brasil no momento em que a quebra das grandes metanarrativas modernas colocam fim nas utopias e certezas, na ideia de verdade que imperava até então e consequentemente nas análises feitas pelas teorias críticas do currículo. Elas serão problematizadas pelos atuais estudos realizados, que agora terão foco nas demandas particulares que começaram a surgir e lutas provindas da diferença, a partir de 1990. Por isso, o objetivo do presente texto é refletir sobre essas pesquisas e mostrar qual é o novo lugar dos sujeitos, que fora da burocracia que implementaram os modelos curriculares, disputam também por significados dentro de um contexto no qual não há mais a ideia de um centro emanando um único poder.

O surgimento das teorias críticas e sua problematização
Surgidas em meados do século XX, nos Estados Unidos, as teorias críticas do currículo vieram inverter a lógica das reflexões tradicionais e dentre elas as tecnicistas, que colocavam o

“Currículo como um artefato neutro, inocente e desinteressado – [pois] não estavam preocupados em fazer qualquer tipo de questionamento mais radical aos arranjos educacionais existentes, às formas dominantes de conhecimento ou, de modo mais geral, á forma social dominante. (...) [Portanto vai colocar] o status quo como referência, privilegiando acima de tudo o fazer técnico no âmbito das práticas e reflexões curriculares.” (MACEDO, 2007, p. 37)

Esse fazer técnico, vale destacar, foi promovido a partir da obra de Franklin Bobbitt, em 1918, nos Estados Unidos, chamado “The curriculum”. De acordo com Roberto Sidnei (2007), este teórico, influenciado pela perspectiva de administração científica de Frederick Taylor, queria um currículo tal como se organizava uma empresa ou fábrica, ou seja, com objetivos, ações minuciosamente conhecidas e fragmentadas, eficiência e eficácia. Esta concepção tecnicista veio se juntar as experiências da psicologia behaviorista da época, que dava valor a eficiência da aprendizagem por procedimentos e processos de condicionamento e desenhou um tipo de ensino que se desejava para a época.

Por isso, de forma a questionar esses modelos curriculares, a teorias críticas do currículo

“Inspiradas fundamentalmente na visão crítica do marxismo, em relação à organização social concebida pelas sociedades capitalistas ocidentais e suas ideologias, as teorias críticas percebem a educação como resultante desse arranjo social e dos poderes daí advindo.” (MACEDO, 2007, p. 57)

Isso significa dizer que os saberes contidos nos currículos são opções de formação que trazem por trás, ideologias e formas de poder para legitimar e perpetuar as relações de classes estabelecidas, aspecto que muitas vezes não estão explicitados.

Esse conjunto de argumentos tem inauguração pelos trabalhos de M. Apple nos Estados Unidos. Ele usa os elementos centrais da crítica marxista da sociedade, como dominação de classe daqueles que detêm o controle da propriedade, para enfatizar o quanto isso está ligado a forma como o currículo se organiza. Porém ele os analisa de uma forma a evitar uma concepção mecanicista e determinista dos vínculos entre produção e educação. Por fim, Apple explicita que a ideologia presente no currículo oficial, para fazer uma leitura sobre poder e hegemonia na reprodução social e resistência nos cenários curriculares.

Outro teórico crítico a dissertar sobre o currículo, será Henri Giroux. Roberto Sidnei (2007) expõe que este

“Influenciado de perto pelas ideias de Paulo Freire, a partir das noções de libertação e ação cultural, Giroux vai atrelar a pedagogia e o currículo ao campo da cultura, mais precisamente ao campo de uma política cultural, diria mesmo da cultura politizada, mostrando que a emergência do currículo se configura no campo de disputa por significados. Nasce desse veio argumentativo a ideia dos ‘professores como intelectuais transformadores’ e de uma ‘pedagogia de possibilidades emancipatórias’.” (MACEDO, 2007, p. 59)

Estas contribuições foram essenciais para que o campo começasse a refletir sobre as práticas curriculares, a partir de uma análise histórica, ética e política. Porém eles serão desconstruídos na medida em que as teorias pós-críticas vão revertendo a ideia de hegemonia, pois para estes, o currículo não engendra somente a reprodução da sociedade vigente, mas também processos de contra-hegemonia, possibilidades de resistência e mudança, não só o que o currículo faz com o sujeito, mas o que este no processo de negociação e disputa por significado, faz com o currículo.

As teorias pós-críticas
Esse aprofundamento dos estudos pós-críticos se deve ao nosso atual regime de historicidade e são chamados de pós-modernos, modernidade liquida, presentismo, presente amplo. Ele é caracterizado pelo

“(...) fim das utopias e das certezas, de desmoronamento da ideia de verdade centrada na prova empírica, na objetividade, na natureza ou na evidência matemática. Um tempo de explosão das demandas particulares e das lutas da diferença, de aceleração das trocas culturais e dos fluxos globais, de compressão espaço-temporal. (...) [No qual] antigos projetos de uma sociedade sem poder, sem classes, sem conflitos, reconciliada consigo mesma, são abandonados e novos projetos utópicos não parecem ser construídos como substitutos. Mesmo porque a concepção de um ser humano centrado, consciente dos seus direitos e capaz de reivindicar e lutar por esses projetos, é desconstruída.” (LOPES, 2013, p.8)

Lugar onde as metanarrativas modernas caem por terra e junto a ela a ideia de um futuro melhor. É em consequência, cabe salientar, que se recorre sempre ao passado não vivido com um certo tom nostálgico como nos coloca Gumbrecht, no seu livro “Nosso amplo presente: O tempo e a cultura contemporânea”, com o intuito de fugir ou retardar o ritmo do tempo. Esse passado é colocado como um lugar de mudança coletiva, onde

“Acreditávamos nos conteúdos básicos do currículo como saberes que poderiam garantir o projeto de sociedade com o qual sonhávamos. Esses conteúdos eram concebidos como o centro do currículo – seu core – e trabalhávamos pela formação de sujeitos – os cidadãos emancipados e críticos ou os intelectuais orgânicos gramscianos – capazes de atuar pelas mudanças sociais entendidas como de interesse da maioria da população de um país, ou mesmo da humanidade, e como garantidoras do projeto social pretendido.” (LOPES, 2013, p.9)

Uma nova forma de conhecer, compreender o tempo, o social. No campo do currículo, utiliza-se de teorias pós-críticas

“para se referir às teorias que questionam os pressupostos das teorias críticas, marcadas pelas influências do marxismo, da Escola de Frankfurt e em alguma medida da fenomenologia, discussões em que as conexões entre currículo, poder e ideologia são destacadas.” (LOPES, 2013, p.9)

Porém, dentro dessas há diferenças marcantes. Podemos destacar algumas, são elas: pós-estrutural, pós-colonial, pós-moderno, pós-fundacional e pós-marxista.

Michel Foucault foi um teórico importante para que as reelaborações do conceito de poder e saber fossem refletidas. Segundo ele, o poder não é “um fenômeno de dominação maciço e homogêneo”, pois, “nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação”. (FOUCAULT, 2003, p. 103).

E o Brasil nesse contexto?
Roberto Sidnei (2007) em diálogo com Lopes e Macedo, argumenta que o pensamento curricular no Brasil só começa a esboçar as primeiras preocupações com o campo, a partir de 1920 e de lá até 1980, terá uma influência das teorias norte-americanas, muito por conta dos acordos brasileiros com estes em programas de ajuda à América Latina. Uma mudança efetiva nessa perspectiva só será possível com o início da redemocratização do Brasil e o pensamento curricular vai conhecendo as vertentes marxistas. Neste interim:

“Crítica, cotidiano e processo são categorias que vão compor os estudos do currículo entre nós, num caminhar de superação das perspectivas pautadas nas visões funcionalistas, psicologizantes e reprodutivistas, por muito tempo predominante neste campo.” (MACEDO, 2007, p. 42)

Isso só mudará nos anos de 1990, quando o pensamento curricular optar por uma análise predominante sociológica e antropológica, com um interesse preponderante de analisar o poder na realidade curricular e:

“O currículo passa a ser considerado um texto político, ético, estético e cultural, vivido na tensão das relações de interesse educativo protagonizado pelos diversos atores sociais.” (MACEDO, 2007, p. 42).

Conclusão
As pesquisas pós-críticas impactará as formulações posteriores realizadas no Brasil, possibilitando novas análises sobre sujeitos que, tradicionalmente vistos dentro da esfera curricular como sem voz, como ator curricular e por meio dos seus atos de currículo, ou seja, a partir das atividades que se organizam e se envolvem visando uma determinada formação, podem pautar os conteúdos que eles compreendem importantes para a sua formação e que foram alijados durante muito tempo.

Por fim, quero salientar que a construção curricular, só se torna representativa quando todos os sujeitos que neles estão envolvidos podem discutir e implementar, por mais que já tenham demandas pré-existentes. Isso, longe de gerar impossibilidade na construção, traz para o currículo realidades que são múltiplas e que só advém com o contato com a diferença.

Referências
Lívia Caroline faz mestrado em História na Universidade Federal da Bahia – UFBA.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2004.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. O nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed UNESP, 2015.

LOPES, Alice Casimiro. Teorias pós-críticas, política e currículo. Educação, Sociedade & Culturas, v. 39, p. 7-23, 2013. Disponível em: https://www.fpce.up.pt/ciie/sites/default/files/02.AliceLopes.pdf

MACEDO, Roberto Sidnei. Currículo: campo conceito e pesquisa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.


3 comentários:

  1. Olá Lívia! Seu texto me ajudou muito a refletir acerca da historicidade de teorias do currículo e suas construções no Brasil. É possível afirmar que a partir de teorias críticas, conhecimento, poder e identidade passaram a ser conceitos chave de investigação neste campo ou apenas a partir de teorias pós-críticas?

    Elizete Gomes Coelho dos Santos

    ResponderExcluir
  2. Olá Lívia. Parabéns pelo texto. Gostaria de perguntar se você acredita que atualmente as teorias pós-críticas (ou até mesmo as críticas) estão lidando com todos os problemas da educação atual, ou se está surgindo uma nova ideologia a respeito?

    Obrigada

    Att,

    Crislli Vieira Alves Bezerra

    ResponderExcluir
  3. Boa tarde Lívia. Sua reflexão demonstra o quanto se perde quando se negligencia um campo de discussão tão importante quanto esse que costumamos identificar pelo termo pós-crítico. Entendo que existe um deslocamento da centralidade do sujeito para a centralidade nos discursos – como ações práticas que definem a relação entre poder e conhecimento – que possibilita essa reinserção doas atores curriculares, como como objetos das análises, mas agentes da ação. Como você tem colocado essa discussão em sua pesquisa e de que maneiras você pensa esse deslocamento sob o ponto de vista do ensino de História?

    Obrigado

    Jeferson Rodrigo da Silva

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.