Giovanna Santana e Patrícia Magalhães Pinheiro

OS TEMAS SENSÍVEIS NO ENSINO DE HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: BREVES APONTAMENTOS

Este trabalho surgiu em virtude dos debates promovidos pela disciplina “Seminário especial os temas sensíveis no campo da educação: questões de ética e estética” ministrado no primeiro semestre de 2017 pelo pós-doutorando Nilton Mullet Pereira, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e coordenado por Elison Antonio Paim, professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. As leituras circundaram as temáticas do direito e do dever de memória, das opressões raciais, de gênero e de classe, assim como debates acerca dos momentos traumáticos na História, como são os desastres socioambientais, o genocídio nativo americano, africano, palestino e armênio, tanto quanto as experiências dos regimes totalitários, tais quais o nazi-fascismo e as ditaduras civis-militares na América Latina.

A justificativa para a inserção dos temas sensíveis e traumáticos nos currículos pauta-se, fundamentalmente, no princípio de criar condições para os exercícios da empatia e da alteridade. Mediante a persistência das violências do racismo, do machismo e do fascismo, junto a suas implicações como o feminicídio, a homofobia, a transfobia, além da constante dizimação de povos afrodescendentes, ameríndios, palestinos ou ainda as crescentes manifestações de ódio relacionadas tanto à classe quanto aos posicionamentos políticos, torna-se urgente rever as formas de educação escolar no Brasil com o objetivo de ampliar práticas educacionais que despertem a consciência e o respeito diante do Outro. Quanto mais essas questões repercutem na sociedade, quanto mais emergem movimentos conservadores para afastá-las do âmbito das escolas, vide o Movimento Escola Sem Partido. Logo, é evidente que tratar de temas sensíveis na educação significa incluir problemas políticos nos currículos. 

Este texto contempla brevemente o percurso que possibilitou a introdução dos temas sensíveis na historiografia e uma reflexão acerca da apropriação dessa perspectiva pelo ensino de História. Também problematizamos as potencialidades e as limitações de tais reflexões, buscando refutar uma leitura eurocêntrica que limita a abordagem dos temas sensíveis aos eventos traumáticos circunstanciados na Europa.

Desse modo, o contexto global que envolve as transformações no campo disciplinar da História é marcado não somente pela eclosão das narrativas sobre o Holocausto e as Grandes Guerras, mas igualmente pela persistência do antissemitismo e dos conflitos na Palestina, pelas memórias da guerra na Argélia, pelas lutas de descolonização da África e pela redemocratização dos países latino-americanos. Entretanto, é correto afirmar que os temas sensíveis como possibilidade de pesquisa em História surgiram a partir da apropriação por parte dos historiadores de conceitos oriundos da Psicanálise, tais como neurose de guerra e neurose traumática. Esse movimento, especialmente formulado pelas historiografias francesa e alemã, sobretudo, no tocante às experiências das Grandes Guerras, motiva leituras eurocêntricas a respeito do tema. Além disso, os temas sensíveis emergiram anexos à perspectiva da História do Tempo Presente que, por sua vez, foi institucionalizada após a reorientação do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial para Instituto de História do Tempo Presente (IHTP) em 1978 na França.

Contemporaneamente as pesquisas sobre o luto, a memória e as implicações dos traumas coletivos para História são promovidas por pesquisadores como o filósofo francês Paul Ricœur (1913-2005), o historiador belga Pieter Lagrou, o norte-americano Dominick LaCapra, o historiador dos temas sensíveis na educação francesa Benoit Falaize, bem como pelos alemães Jörn Rüsen e Andreas Huyssen. Nas pesquisas brasileiras destacam-se as produções de Francisco Carlos Teixeira (2016) e Carlos Fico (2012), bem como os trabalhos sobre historiografia alemã e francesa orientados por Júlio Bentivoglio (2013).

Segundo o historiador Carlos Fico (2012), que trata os acervos dos anos ditatoriais no Brasil como documentos sensíveis, uma das principais características da História do Tempo Presente seria a pressão dos contemporâneos ou a coação pela verdade. O mesmo que dizer, a possibilidade de os conhecimentos históricos serem confrontados pelo testemunho daqueles que viveram certos fenômenos que o historiador busca narrar. Associa-se também à esta particularidade a introdução das fontes orais para a compreensão dos eventos ocorridos, ressaltando a importância das narrativas dos sobreviventes com o propósito político do não esquecimento, além do mais “justificadas pela noção de que, para além das razões, aquilo que costumamos chamar de sentimentos também poderia assinalar uma maneira de ver e de se posicionar no mundo.” [in Duran, Bentivoglio, 2013, p. 216]

Posto a repercussão dos eventos traumáticos vivenciados mundialmente no século XX, as ciências humanas investiram fortemente nos estudos memorialísticos a parte da década de 1980, resultando em uma renovação epistemológica nos modos de escrever e de ensinar História. Nesses aspectos, pudemos identificar a retomada de um apelo moral à disciplina por intermédio do dever de memória, bem como a desconfiança relacionada à ordem cronológica do tempo linear.

O termo dever de memória é homônimo à obra do químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987) que reuniu duzentos relatos de sobreviventes dos campos de extermínio publicados em 1982. Levi ficou reconhecido pelas elaborações acerca de suas experiências em Auschwitz contida em diversas de suas obras, dentre as principais o livro ”É isto um homem?” (1947) recusado para publicação pela editora italiana Einaudi, que mais tarde, publicou a segunda edição aclamada somente após 1958.

Do outro lado do Atlântico, também na década de 1980, irrompia a publicação do projeto “Brasil: nunca mais” (1985) expondo as atrocidades cometidas pelo regime civil-militar brasileiro com o detalhamento das estratégias de tortura aplicadas pelos integrantes do regime autoritário. Assim, outros processos pelo dever de memória eclodiram pela América Latina pós ditaduras do Cone Sul, manifestando as diferentes maneiras de construir o dever de memória em países com experiências históricas semelhantes. Podemos citar a exemplo o movimento de mulheres argentinas “Madres de Plaza de Mayo” que desde o término do regime autoritário na Argentina ocupam regularmente a Praça de Maio, situada em Buenos Aires em frente à Casa Rosada exigindo informações sobre seus filhos desaparecidos.

O uso do dever de memória também esteve presente na repercussão midiática do desastre socioambiental de Mariana-Minas Gerais, que teve início em novembro de 2015. Em julho de 2017, a Revista Veja publicou a matéria “Tragédia em Mariana: para que não se repita” no qual advertiu para a possibilidade de novos eventos traumáticos motivados pela falta de fiscalização da mineração no Brasil. De modo semelhante, o sambódromo da Marquês de Sapucaí serviu de espaço para o dever de memória promovido pela escola de samba Portela, do Rio de Janeiro, que buscou representar as experiências traumáticas ocasionadas pelo rompimento da barragem Fundão. A tarefa do não esquecimento foi retribuída com a premiação de melhor desfile no carnaval no ano de 2017.

Diante destas realidades destacam-se a criação de mecanismos pedagógicos capazes de impedir a repetição de certos eventos traumáticos, incentivando a formação de militantes pelo dever de memória para a efetivação do não esquecimento. Um exemplo profícuo deste tipo de intervenção pedagógica é o “Certificado de compromisso com a memória”, contido no livro Mariela Tudenger intitulado “Ana, Hanka, Jana, Hana: Cuatro vidas distintas y muy parecidas” (s/d), destinada ao ensino de Holocausto (Shoá) na educação primária. O certificado tem por finalidade fazer com que os estudantes desde cedo se reconheçam enquanto “sentinela da memória, uma espécie de guardião do passado [...]” (FALAIZE, 2014, p. 768). O material histórico narra as histórias de quatro garotas, a menina techa Hana Brady (1931-1944), as polonesas Hanka Drescher (1931) e Jana Hershkowitz (1935), e também Anne Frank (1929-1945), alemã de origem judaica, desde os seus nascimentos, apresentação das suas famílias, a diversidade dos costumes e as atividades de lazer, seguido do encontro com as experiências traumáticas que vivenciaram a partir da Segunda Guerra. Tanto o material anterior, quanto o livro Tommy para ensino fundamental com cinquenta e dois desenhos pintados pelo artista tcheco Bedřich Fritta (1906-1944) contêm o princípio de gerar identificação e alteridade nos estudos sobre o Holocausto. A ideia central em ambos é construir o sentimento de que aquele poderia ser eu em outras condições.

Portanto, observamos que a introdução dos temas sensíveis no ensino e na escrita da História incumbem a transmissão de um dever de memória como forma de restituir justiça pela inclusão de um marco traumático na narrativa da História, anexo à prerrogativa moral de que aquele evento jamais se repita. Em virtude da condição anterior, a relação entre passado e presente é conduzida pela reelaboração da narrativa histórica enquanto possibilidade de reconciliação dos ressentimentos coletivos no agora. Na esteira deste pensamento, pudemos observar que a condição primordial para o estudo do tema sensível e traumático em História é a observação de um passado resiliente, que em outras palavras, recusa-se a passar.

Em alguns aspectos, são retomados os princípios morais e antigos da História como mestra da vida (Historia magistral vitae), entendendo-a como disciplina capaz de orientar as decisões tomadas no presente em virtude do seu acervo de experiências passadas. Sua vinculação como mestra da vida está apenas na aparente condição exemplar que a História assume neste meio e no “[...] fato de que o historiador não apenas instrua, mas também profira sentenças e juízos, sendo obrigado também a julgar.” [in Koselleck, 2006, p. 56). No entanto, na medida em que a noção antiga da História como mestra da vida pressupõe uma constância da natureza humana, os temas sensíveis se consolidam no entorno das situações limites, fundados num passado subsistente no tempo presente.

Atentamos agora para uma dinâmica ambígua na introdução dos temas sensíveis no currículo, pois na medida em que podem ser concebidos “procurando entendê-los como algo específico a uma determinada situação e, em alguma medida, reveladores do que cada sociedade possui de peculiar” [in Shurster, Silva, 2016, p. 748], a socióloga brasileira Helena Lewin (2008) estudiosa do Holocausto, pressupõe que os momentos limites na História, mesmo em suas singularidades, provocam uma reflexão universal sobre a condição humana.

Nesse sentido, é necessário problematizar as limitações dos temas sensíveis quando restritos à recortes isolados, isentos de uma reflexão estrutural sobre os eventos traumáticos. Evidenciamos, por exemplo, esse tipo de contradição existente no que tange ao ensino de História na França, por intermédio da leitura de Benoit Falaize [2014]. Em seu artigo, adverte para a introdução do Holocausto como tema traumático no currículo e, ao mesmo tempo, a manutenção das representações neutras ou positivas da violência na colonização para a formação escolar dos estudantes franceses. Nas palavras do autor:

“A colonização fazia parte do projeto francês e, portanto, do projeto de educação cidadã dos alunos franceses. [...] A violência colonial, por exemplo, se ela é descrita, heroicizada e valorizada até os anos sessenta como a marca da civilização francesa que se afirma, inclusive pelas armas, ela tende progressivamente a ser expressa por eufemismos, relegada à explicação e no fim das contas acaba por ser pouco estudada. [...] No fundo, a evolução da escrita dos manuais dirigiu‐se lentamente para uma moralização do conflito colonial: a violência é, desde os anos 80, vista com neutralidade”[Falaize, 2014, p. 241-242].

Ademais, historiadores brasileiros mencionam a persistência do colonialismo narrativo no âmbito educacional francês, que nos seus termos, mantêm uma relação seminal com o racismo: 

“Daí se destaca a legislação francesa sobre educação, surpreendentemente recente, que impôs aos currículos escolares franceses, através de seu Artigo 4, o ensino “o papel positivo da colonização francesa nas regiões ultramarinas do império francês”, em 25 de fevereiro de 2005. Assim, colonialismo e racismo guardam, mesmo nos currículos, um forte papel de retro-alimentação.” [in Shurtes, Teixeira da Silva, 2016, p. 758]

Por conta destas incongruências, consideramos que a instrumentalização dos temas sensíveis no ensino de História demanda uma abordagem transnacional, de modo a correlacionar as experiências traumáticas vivenciadas por diversas culturas em condições históricas divergentes. Essa exigência se faz em favor de uma compreensão ampliada da sensibilidade, que não se limita apenas a violências sofridas por certo grupo étnico ou determinada nação num intervalo específico de tempo. Alertamos para o fato de que os estudos de eventos sensíveis isolados em eventos ou nações podem ampliar estereótipos étnicos e no ato delicado de denunciar certas violências, promover outras.

Referências
Giovanna Santana é mestranda junto a linha de pesquisa Sociologia e História da Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento à Pesquisa, sob orientação do prof. Dr. Elison Antonio Paim. Formou-se em História nas habilitações bacharelado e licenciatura pela mesma instituição de ensino.

Patrícia Magalhães Pinheiro é doutoranda junto a linha de pesquisa Sociologia e História da Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação do prof. Dr. Elison Antonio Paim e bolsista do Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Mestra em Educação em Ciências e Matemática pela Universidade Federal de Goiás e Licenciada em Ciências Biológicas pela mesma instituição de ensino.

DURAN, Marieta R. C. BENTIVOGLIO, Julio. Paul Ricoeur e o lugar da memória na historiografia contemporânea. Dimensões, v. 30, 2013. Disponível em: <http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/6162/4503>

FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis o caso brasileiro. Rev. Varia História, nº 47, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/vh/v28n47/03.pdf>

KOSELLECK, Reinhart. História Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento. In: KOSELLECK, R. Entre Passado e Futuro: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. 

LEWIN, Helena. Intolerância e Holocausto na sala de aula: como estudar e ensinar. 6ª Jornada Interdisciplinar sobre o ensino do Holocausto, 2008.

TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. SHCURSTER, Karl. A historiografia dos traumas coletivos e o Holocausto: desafios para o ensino da história do tempo presente. Estudos Ibero-Americanos, v. 42, 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.15448/1980-864X.2016.2.23192>


2 comentários:

  1. Boa noite.

    No textos vocês defendem que é necessário uma abordagem transnacional dos temas sensíveis para não gerar estereótipos. Mas como é possível fazer essa análise em sala de aula e ao mesmo tempo cumprir o currículo?
    Ainda um fator que deve ser levado em conta que a maior parte dos eventos citados, principalmente as ditaduras latino-americanas, são relegadas ao final dos ciclos da educação básica. Logo, como seria possível abordar esses temas com profundidade, valorizando a diacronia (mesma que a distância temporal seja pouca) e a reflexão sobre o passado e o presente?

    Grato pela atenção

    Matheus Mendanha Cruz

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    1. Olá Matheus,

      entendemos que o tipo de abordagem transnacional é compatível com a proposta dos temas transversais contida no Plano Curricular Nacional (BRASIL, 1998, p. 48) e, portanto, caberia no currículo escolar em vigência. A proposta em referência também dialoga com os temas sensíveis no ensino de História quando pauta “as diferenças culturais, étnicas, etárias, religiosas, de costume, gênero e poder econômico, na perspectiva do fortalecimento de laços de identidade e reflexão crítica sobre as conseqüências históricas das atitudes de discriminação e segregação”.
      Todavia, os temas transversais são promovidos via PCNs enquanto projeto interdisciplinar, e nesse sentido, a questão do tempo prático que esses assuntos exigem em sala de aula torna-se dependente dos fatores de abertura da escola para novas propostas, do intercâmbio entre disciplinas, das condições de trabalho docente, do número de alunxs por turma, etc.
      O que podemos concluir, por ora, é que as investidas nos temas sensíveis em sala de aula no Brasil são ainda muito recentes e por isso as experiências até então registradas apresentam metodologias incipientes. Podemos citar o trabalho de Alessandra Gasparotto (UFPel) e Enrique Serra Padrós (URGRS), especificamente tratando das ditaduras do Cone-Sul e suas possibilidades inserção no espaço escolar, assim como a pesquisa de Junia Sales (UFMG) e Luciano Magela Roza (UFMG), que trata do dever de memória das culturas de matrizes africanas no ensino de História.
      Quanto a reflexão entre passado e do presente na perspectiva transnacional estão entre os objetivos propostos para o quarto ciclo (7º e 8º anos) do ensino de História: “localizar acontecimentos no tempo, dominando padrões de medida e noções para compará-los por critérios de anterioridade, posterioridade e simultaneidade;” (BRASIL, 1998, p. 66). De modo complementar, os temas sensíveis estimulam a construção de uma relação direta entre passado e presente, quando pautam a percepção de uma temporalidade fluida, na qual o presente encontra-se impregnado pelos ressentimentos do passado, e o próprio passado vê-se reelaborado na narrativa do presente.

      Gratas pelo interesse no texto,

      Giovanna Santana e Patrícia Magalhães Pinheiro.

      Referências:

      BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1998.

      GASPAROTTO, Alessandra; PADRÓS, Enrique Serra. A ditadura civil-militar em sala de aula: desafios e compromissos com o resgate da história recente e da memória. In: BARROSO, Vera Lúcia; PEREIRA, Nilton Mullet; BERGAMASCHI, Maria Aparecida; GEDOZ, Sirlei; PADRÓS, Enrique Serra. (Org.). Ensino de História - Desafios Contemporâneos. Porto Alegre: EST, 2010, p. 183-201.

      PEREIRA, Júnia Sales. ROZA, Luciano Magela. O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história. Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 89-110, 2012.

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